domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ela (Her)

 Alguns acham que obras de arte são feitas apenas para mostrar, outros acreditam que elas são feitas para incitar. Eu, particularmente, percebo em qualquer obra, a ligação existente entre o que está eminente à percepção e o que é inevitavelmente perceptível, assim, configuro o conceito de arte em si. Por exemplo, uma fotografia está exposta em um salão, nela há um homem vestido de mulambos, de pés sujos e grandes em um cenário urbano em preto e branco. Isso tudo é engolido pelos sentidos sem hesitação, mas quando eu olho para a foto e vejo um mendigo, a informação foi passada e aquilo é arte, mas não é nenhum caso de pré-conceito é a simples comprovação do fato de que a mensagem só se torna informação quando preenchida por contextos e intenções. O mérito dos bons filmes e obras de arte em geral, está em estimular parâmetros suficientes para serem preenchidos pelo espectador visando a discussão idealizada pelos realizadores e o filme novo de Spike Jonze é definitivamente ótimo.



   Em algum momento no futuro, Theodore (Joaquin Phoenix), um muito sensível e perceptivo, escritor de cartas, se apaixona por Samantha (Scarlet Johansson). Ao se conhecerem, os dois, maravilhados com as suas diferenças, tornam-se inseparáveis. Na praia, no parque e em um hotel de inverno o casal tem longas discussões sobre a vida, sobre amor e sobre eles mesmos. Não demora muito e o inevitável acontece, as diferenças que até então eram a razão deles estarem juntos se tornam a principal dificuldade na relação dos dois. "Clássico" é o adjetivo que passou pela sua cabeça, mas Ela está longe disso e é, na verdade, uma primorosa crítica a mesmice de nós mesmos. É um filme sobre mudanças, sobre a fluidez do mundo em que vivemos, da sociedade que fazemos parte e do amor que podemos sentir por palavras, sons, toques, cheiros, imagens, sistemas operacionais e talvez até pessoas.

 Há quem diga que, hoje em dia, ninguém mais tem amigos, que namoro a distância não dá certo, que amizade no Facebook não significa nada. Há quem diga que as pessoas cada vez interagem menos e que vamos viver um futuro impessoal e essencialmente individualista. No futuro, simplista, limpo, estiloso e organizado (muito bem construído pela fotografia, trilha e direção de arte) de Jonze, as pessoas não são anti-sociais em nenhum aspecto, diferentemente do que alguns acreditam, toda a tecnologia existe em função da praticidade (sem exageros), do aprimoramento e da mutação das formas de interação.



 O sistema operacional OS1 é vendido evocando questões primordiais da nossa existência e assim anunciando a criação do humano sintético. Ao conhecer o seu OS1 Samantha, Theodore resiste em aceitar a sua natureza, mas enfim se apaixona por ela, sua abstração, sua beleza e suas capacidades. Ele não se adaptou a velocidade com que os conceitos se transformam para Samantha e, como qualquer ser humano, aprisionado pelo confortos dos padrões da sociedade em que vive, Theodore tem dificuldades em aceitar a brusca mudança proposta por Samantha, e nessa situação se escondem as principais ideias e questões do filme.

 No final do filme eu poderia fazer o que quisesse com os parâmetros que ficaram e eu quis ver nas dificuldades de aceitar aquele amor não convencional, uma crítica a "sociedade da comparação" em que vivemos. Nada "é", por assim dizer, tudo "acaba sendo". O amor, por exemplo, só pode ser como os outros dizem ser e não importa o sentimento em si. Você sente atração por alguém do sexo oposto de aparência popularmente aceitável, você aceita os defeitos desse alguém, quer estar ao lado desse alguém para sempre e conheceu o tal alguém pessoalmente, se os sintomas persistirem você está amando. Mas se não for do sexo oposto? Se não for de sexo algum? O amor de um homem por seu computador me deixou os parâmetros para propor que não importa o quão social seja a sociedade, o amor é meu e ele é o que eu faço dele.


NOTA: א א א א א א א א

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Fruitvale Station

Em meio a temporada de Oscars, entre tantas produções milionárias e computação gráfica de ponta, eis que aparece, timidamente, Fruitvale Station,  filme de estréia de Ryan Coogler, que, com ele, já conseguiu faturar o prêmio máximo em Sundance. Com uma produção inicialmente independente, a obra dramatiza a vida de Oscar Grant, principal componente do fatídico escândalo da estação Fruitvale, acontecido no primeiro dia de 2009.

Entre a abertura, com imagens reais do acontecimento, e o fechamento, que mostra o reflexo do incidente nos dias de hoje, encontramos um simples mas tocante filme. Oscar, como qualquer outro ser humano, tem falhas, mas procura melhorar, posto que está em um momento de mudanças, com uma filha de poucos anos e, portanto, uma família em  formação.


A câmera de mão e a trilha sonora leve e muitos cenários vazios ajudam a dar uma atmosfera  mais pessoal ao filme, e Michael B. Jordan (que desde o bom "Poder Sem Limites", está em merecida ascensão) carrega-o com  delicadeza e intensidade, quando necessária. É interessante também, citar uma edição de som original, focada em contrastes, e dar os devidos créditos a Octavia Spencer, que faz um ótimo trabalho como mãe e conselheira de Oscar.

(SPOILER) Após imersos na obra e apegados ao personagem, vemo-lo comemorando a virada do ano com amigos quando se depara com um marginal com quem já se desentendeu no passado. O conflito ocorre no metrô, em direção a estação Fruitvale, mas o pior está para acontecer, quando os policiais, que deveriam melhorar a situação, pioram-na sériamente. Somos deparados com o preconceito e maus-tratos dos oficiais despreparados, que convergem ao clímax carregando uma tensão imensa, quase comparável a Gravidade.



O filme é todo trabalhado para incitar a indignação no espectador e deixa muitos questionamentos sobre a vida e os preconceitos na sociedade. Apesar da cena conclusiva ser semelhante a inicial, dessa vez, sentimos todo o peso de ter acompanhado "de perto" a vida do injustiçado, dando ao filme até comedido, mas puro, um belo toque final.

NOTA: א א א א א א א

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Álbum De Família (August: Osage County)

 Toda família nutre intrigas, discute problemas e aponta defeitos, mas, claro, cada uma com as suas particularidades e intensidades próprias. O ato de compartilhar os problemas é intrínseco a qualquer relação social  de afinidade e proximidade.O seu melhor amigo conhece os seus defeitos, suas dificuldades e seus problemas em geral e, se não, é apenas questão de tempo. O normal do ser humano é tratar de seus percalços com ajuda ou audiência, por isso o fluxo tão grande de más noticias dentro dos grupos familiares. Esse é um fenômeno interessante por incitar o questionamento: "O que nós mais almejamos? O problema ou a solução?". Contudo, o roteirista Tracy Letts parece não entender isso muito bem.



 As irmãs Barbara (Julia Roberts), Ivy (Julianne Nicholson) e Karen (Juliette lewis), separadas devido à hostilidade da mãe Violet (Meryl Streep) são obrigadas a se encontrar em uma forçada reunião familiar, quando o seu pai foge de casa. Aqui o diretor optou pelo exagero, ele optou não por mostrar, mas enfiar "olho" abaixo tudo o que ele queria dizer, opção que funciona bem e pode até ser excepcional em comédias satíricas ou em peças de teatro aonde a ideia é salientar na realidade o que é útil à pretensão do diretor do filme ou da peça. No entanto estamos falando de um filme, não de uma peça. Um filme que só se leva a sério e que mesmo com suas piadas agressivas não perde o foco da situação extremamente caótica que retrata.

 Álbum De Família não é um filme de feitos, é um filme de personalidades aonde as relações entre elas é que vão valer o seu ingresso. A personagem de Meryl Streep adquiriu, durante uma infância conturbada, uma mania de intriga, ela assumiu as discussões e o deboche como as suas principais formas de interação e torna isso a principal razão da união familiar. Karen foge de discussões, Ivy esconde o seu relacionamento e Barbara assume a função de líder controladora, como a única capaz de restituir a ordem. Todas as três carregam magoas reprimidas por um cotidiano de reprovações e submissão. O fato é que a simples existência da Violet é motivo suficiente para todo o desconforto de todos os personagens, além de, por sua naturalidade ou selvageria, estabelecer uma relação com a realidade cultural de algumas famílias.



 Eu, particularmente, aceito sem franzir as sobrancelhas, que se faça de um filme um teatro filmado, que se use a atuação do exagero, que sejam usados poucos movimentos de câmera, que tudo aconteça em um só cenário e que a comédia seja a assistência da atenção. Eu aceitei o contemporâneo, a necessidade fluida e subjetiva de mudança constante e experimentação com a condição de manter os seus propósitos no caminho emissor/receptor. Álbum De Família não se contenta com o caos inerte na situação principal e cria problemas e confusões paralelas, como uma tentativa de assédio, um incesto acidental e um casamento destruído por infidelidade que, nunca muito bem desenvolvidos, servem apenas para distanciar a historia de sua relação com a realidade dos espectadores e aproximá-la de uma novela de dramaticidade gratuita.

NOTA: א א א א א ½

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Lobo de Wall Street (The Wolf Of Wall Street)

Enfim, o aclamado diretor de Taxi Driver, Os Bons Companheiros e outros clássicos volta às telas. Dessa vez, explorando os temas que melhor sabe conduzir: dinheiro, criminalidade e poder. Adaptado do livro homônimo, o filme tem três horas que mais parecem nem chegar a duas, fruto do ótimo trabalho de edição de Thelma Schoonmaker, que acompanha Scorsese desde seus primeiros filmes.

Gostaria de começar pela estrutura excêntrica que a história se desenrola, com constantes quebras da quarta parede, que, além de ajudar a manter o ritmo do filme, passa ao espectador  mais segurança e até egocentrismo, vindos do carismático Jordan Belfort (Leonardo Dicaprio). O personagem, aliás, conduziu o filme com exageros na medida certa, desde sua insegurança ao adentrar a venerada e temida Wall Street até seu complexo megalomaníaco, no auge do seu sucesso.



Além de Dicaprio, são dignos de reverências Jonah Hill, que até o tom de voz mudou para viver Donnie Azoff, e Matthew Mcconaughey, como Mark Hanna, o primeiro  chefe de Jordan, frenético e com danos mentais óbvios (bem provavelmente por seu tempo vivido nesse ramo).

É com seus discursos amorais e politicamente incorretos que Belfort vai recrutando os jovens mais sedentos por dinheiro, criando, aos poucos, sua matilha, até ser abordado por um agente do FBI no seu iate, resultando no melhor diálogo do filme, em que Jordan tenta implicitamente suborná-lo, mas fracassa. Então, diante da recusa, vai assumindo um tom mais agressivo até atingir um surto de ostentação.

Apesar de contar com várias outras cenas marcantes, como a da overdose de "Ludes", e a do iate na tempestade, o filme desanda um pouco perto do final, quando os acontecimentos sequenciados ficam muito acelerados, talvez, numa tentativa de ser fiel aos fatos do livro. Nada disso, no entanto,  tira o mérito de Martin Scorsese, que mesmo aos 71 anos, mostra-se em forma com essa comédia ágil de teor jovem e que nem o tempo pode ir contra seu vigor pela sétima arte.

NOTA: א א א א א א א ½